José Alexandre Altahyde Hage é professor de Relações Internacionais na EPPEN/Unifesp (crédito imagem: Alex Reipert / DCI/Unifesp)

Nosso intuito neste texto é fazer breves observações baseadas em hipóteses. Por isso, não se trata de esgotar assunto que domina boa parte do debate das relações internacionais nas universidades e da imprensa em geral. Nosso objetivo é somente contribuir com o debate que, por si, é historicamente bastante complexo sem se filiar a lugares-comuns.

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A primeira observação que fazemos é sobre a premissa de que a inteligência israelense, considerada uma das mais qualificadas do sistema internacional, havia “comido mosca” por não ter percebido, no dia 7 de outubro de 2023, a ação violenta dos membros do Hamas em território israelense, partindo de Gaza para fomentar terrorismo em localidade bem próxima à cidade de Telavive. Naquela localidade havia uma festa rave na qual havia gente de vários países, inclusive brasileiros. Festas com esse perfil são comuns para a juventude israelense.

Porém, algo pode ser posto nesta análise: a inteligência israelense, exercida pelos serviços Mossad e Shin Bet, falhou grandemente em sua missão ou cumpriu seu papel, mas sem receber devida atenção de determinados membros do governo? Determinados governantes receberam tais informações da inteligência, mas não souberam dar destino correto? Falhas dessa natureza já ocorreram em Israel, embora seus serviços de segurança sejam de qualidade.

Organização Interna – Talvez o exemplo mais citado de tais erros de segurança seja o que ocorreu justamente em outubro de 1973, dando origem à Guerra do Yom Kippur, feriado sagrado para judeus, no qual Egito e Síria, primeiramente, atacaram Israel sem que esse se desse conta. Ao saber do ataque, teve de sofrer enorme desgaste militar para, posteriormente, conseguir se organizar e compreender a natureza daquela guerra e contra-atacar.

Depois de quase um mês, Israel consegue lograr vitória, mas com gosto amargo, por dois motivos: 1. Embora tenha saído vitorioso, Israel passou a imagem de ser militarmente vulnerável ao sofrer grandes baixas; 2. Arranhou bem a imagem de seus serviços de inteligência, que haviam ganhado fama (e controvérsia, pois desconsiderou o Direito Internacional, de acordo com as Nações Unidas), entre outras coisas, pela Operação Ira de Deus, vingando o assassinato de atletas israelenses nas Olimpíadas de Munique, de 1972. Não é à toa que tal crise da inteligência deu descrédito à lendária figura do general Moshe Dayan, ministro da Defesa que carregava enorme prestígio por antecipar saídas rápidas em conflitos armados. Também deu descrédito à sua primeira-ministra, Golda Meir.

A questão é que, em hipótese, Israel sofre de uma divisão cultural e simbólica desde os anos 1960, quando o país havia se firmado como potência suficiente do Oriente Médio, que, embora de reduzidíssimo tamanho territorial, conseguia imprimir vitórias sobre inimigos bem maiores e que guerreavam em grupo. Um dos motivos para tanto seria a qualidade organizacional de suas forças armadas, bem como ardente desejo de adquirir tecnologia militar sofisticada, o que leva à ideia de que Israel detém bomba nuclear.

A possível cisão simbólica e cultural israelense pode ser percebida em duas situações, não automaticamente ligadas. Na primeira, após a estrondosa vitória na Guerra dos Seis Dias, em junho de 1967, Israel passou a sentir o gosto da invulnerabilidade, de que não haveria inimigos suficientes para tirá-lo de sua preeminência regional, isso até outubro de 1973. Depois de conseguir superar aquele problema, de resposta e organização, o país caminhou de modo menos dramático, ainda que sofresse ataques momentâneos e localizados, citemos os confrontos das Intifadas, mas que posteriormente foram neutralizados em grande parte.

Outra situação, a segunda que apontamos em Israel, é aquela resultante das diferenças de modo de vida, e de visão de mundo, entre as duas metrópoles: Telavive e Jerusalém. Telavive, centro intelectual, artístico e econômico, cidade praiana, recebe o apelido de a “bolha”, por passar imagem de ser centro cosmopolita, de grande agitação, a exemplo de Nova Iorque ou Rio de Janeiro. A cidade israelense é o único lugar com tais características no Oriente Médio.

Em Telavive há manifestações de orgulho gay, de direitos homossexuais, como em São Paulo também lá se permitem várias manifestações culturais que, em parte, deixam o judaísmo em segundo plano. Seus habitantes são judeus modernizados, laicos, chamados, com pitada de maldade, de helenizados. A cidade é chamada bolha por passar imagem de ser indiferente aos problemas do Estado; uma vida cosmopolita, de prazeres, seria a tônica da metrópole que deu vida às festividades chamadas rave, na qual a alegria deve vir em primeiro lugar.

Já Jerusalém, capital contestada de Israel, cidade disputada e planaltina, percebe-se como realmente aquela que se preocupa com os destinos da nação. Lá não se permite praticamente nada que é comum em Telavive. Em Jerusalém a religião é mais bem seguida, os ortodoxos têm mais presença. Isso sem falar que é naquela cidade onde se situam os três lugares sagrados do monoteísmo: o Muro das Lamentações para os judeus; o Santo Sepulcro para os católicos e cristãos ortodoxos, e a Esplanada das Mesquitas para os islâmicos.

Aqui já fica patente que manifestações da “subjetividade” não são bem recebidas. Além do mais, por ser capital de Israel, Jerusalém é a sede de organizações governamentais e recebe grande atenção do exército, por ser área fronteiriça da Autoridade Palestina, na Cisjordânia, e por sofrer, de tempos em tempos, conflitos religiosos e políticos. Por fim, será que um país que possui duas concepções de mundo, possivelmente conflitantes, em território tão pequeno, não pode ter problemas de organização em determinadas situações? É claro que aqui se trata apenas de reflexões que não têm intenção de apontar responsabilidades (Não nos esquecemos do problema político que o governo de Benjamim Netanyahu tem promovido por procurar subordinar o sistema jurídico israelense, da Suprema Corte, ao Executivo nacional. De certa forma, essa atitude do primeiro-ministro revela não apenas uma disputa por autoridade, mas também a dificuldade de se instituir um governo montado a partir de várias plataformas partidárias, nem todas concordantes).

As possíveis razões da guerra – Nas análises gerais de relações internacionais, o motivo mais comentado sobre os ataques terroristas do Hamas tem a ver com o processo de aproximação diplomática entre Arábia Saudita e Israel. Isto porque, há algum tempo, o Reino tencionava repetir o gesto feito por Marrocos, Sudão, Bahrein e Emirados Árabes Unidos de reconhecer o direito de existência de Israel como Estado soberano. Tal atitude, de fato, normalizaria as relações diplomáticas do Oriente Médio, uma vez que Israel já era reconhecido diplomaticamente por Egito e Jordânia.

Assim, a aproximação de reconhecimento por parte dos sauditas concluiria um processo em grande estilo, visto que a Arábia Saudita é o maior e o mais influente país do mundo islâmico, e poderia influenciar positivamente as relações diplomáticas desses países com Israel.

O gesto violento do Hamas, dessa forma, cumpriria um desejo do Irã, adversário saudita, por preeminência no mundo muçulmano. Teerã usaria o Hamas como títere para efetivar uma “guerra por procuração” contra Israel e anular a aproximação entre Riad e Jerusalém. De fato, desde o dia 7 de outubro o processo de reconhecimento está suspenso, o que daria a entender que o Irã teria sucesso em sua empreitada. Mas será que isso seria suficiente?

Uma visão paralela a isso indica que o Irã, talvez, não quisesse se indispor com os sauditas, já que ambos os países também se aproximaram diplomaticamente, em virtude da iniciativa diplomática chinesa, para dar cabo de décadas de rivalidade. Porém, não houve mais que reconhecimento, pois nada de substancial foi feito no campo cultural, econômico e político.

Talvez o ato diplomático entre as duas potências islâmicas tenha servido para ganhar tempo para escapar das perturbações que um poderia fazer sobre o outro, o que seria contraproducente. Prova dessa aproximação apenas formal é que sauditas e iranianos ainda promovem guerra por procuração no Iêmen, vitimado por apoios contrários em uma guerra civil.

Não se pode ignorar o motivo mencionado acima, partindo do Irã, mas seria apressado dizer que a suspensão de reconhecimento entre Israel e Arábia Saudita tenha ocorrido, exclusivamente, por causa do Hamas. A diplomacia do Reino é bem treinada e internacionalizada e, certamente, teria conhecimento da malícia iraniana para conturbar seu relacionamento com Israel. A aproximação entre Riad e Jerusalém pode dar acesso a tecnologias de ponta no campo da energia eficiente, bem como em economia moderna, de serviços e informática, já que é sabido que os sauditas procuram dividir sua economia do petróleo, com tendência a cair nas próximas décadas, por algo mais factível e gerador de recursos.

Não é à toa que a Arábia Saudita faz movimentos ousados para atrair capital internacional para a criação de centros de lazer, cultura e turismo. Sua conduta tradicional de controle nacional tem aberto espaço para atrair turistas, além dos já conhecidos que fazem peregrinação aos lugares sagrados de Meca e Medina. Por outro lado, Israel ganharia estabilidade para poder desviar fortes recursos financeiros, usados na segurança nacional, para políticas de bem-estar. Isto porque o Reino saudita poderia pressionar a comunidade muçulmana a não mais tratar o Estado judeu como inimigo número um a ser exterminado.

É claro que a aproximação entre Riad e Jerusalém entra em compasso de espera em clima de guerra, por sinal violentíssima e que vitima bom número de palestinos na Faixa de Gaza, como parte de efeito colateral. No campo da realpolitik, os sauditas sabem disso. Então por que o Hamas fez o que fez? Entre outras coisas, como exercício de especulação, para que haja instabilidade em Israel, para que a sociedade israelense viva sob tensão. Em outras palavras, para que esse agrupamento imprima posição de destaque, guerra de movimento, para sublinhar que o conflito não deve acabar, mesmo com baixas do Hamas e alguma crítica internacional.

Em consequência do exposto acima, podemos também citar o desgaste financeiro que o Hamas joga nas costas de Israel. Se o grupo terrorista consegue atacar Telavive, por exemplo, com foguetes primários, de baixa tecnologia, mas com poder de fazer algum estrago, Israel tem que contra-atacar com armamento de tecnologia avançada. Citemos o famoso sistema Iron Dome, que lança mísseis interceptores dos foguetes que partem de Gaza. O sucesso de interceptação pode chegar a 90%, mas a um custo de cem mil dólares por míssil. Quantos mísseis Israel tem de lançar para neutralizar os ataques do Hamas ao ano? Não deve ser pouco.

Ainda que Israel tenha uma economia moderna e progressista não há como suportar por muito tempo gastos de segurança que atinjam essa cifra. Isso pode ser, de alguma forma, um dos objetivos do Hamas drenar a economia média israelense para o ralo. Eis aqui a guerra de movimento.