O coronel Moreira César: Carrasco de jornalista que morreu em Canudos, na Bahia | Foto de arquivo/Revista Illustrada

Por William Helal Filho

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Apulco de Castro não poupava ninguém. Fundador do “Corsário”, um dos jornais mais populares no fim do Brasil imperial, ele atacava em seus textos autoridades da monarquia, escritores, rivais jornalistas e até abolicionistas como ele, devido a diferenças na forma como se opunham à escravidão. Suas ofensas eram feitas com calúnias e linguagem chula, o que o qualificava como expoente da “imprensa pornográfica” do Rio no fim do século XIX. Mas mesmo aqueles que foram alvos de suas críticas repudiaram o jeito como Castro foi assassinado.

Em outubro de 1883, depois de publicar artigos difamando oficiais do 1º Regimento de Cavalaria Ligeira, o jornalista entrou na mira dos militares e foi buscar proteção na própria chefatura de polícia da cidade, então capital do país. Dizendo-se ameaçado, ele saiu do prédio sob custódia do capitão Ávila, ajudante de ordens do Visconde da Gávea, então o comandante do Exército. Os dois estavam na Rua do Lavradio, no Centro do Rio, quando foram encontrados por um grupo de militares “encarregados” de se livrar de Castro.

No clássico “Os sertões” (1902), Euclides da Cunha descreve a cena que se sucedeu naquela tarde. Segundo o escritor, para se vingar do jornalista, “foi infelizmente resolvido por alguns oficiais, como supremo recurso, a justiça fulminante e desesperadora do linchamento”. Ainda de acordo com Cunha, “entre os subalternos encarregados de executar a sentença”, estava o ainda capitão Antônio Moreira César, militar em seus 30 anos de idade, “o mais afoito, o mais impiedoso, o primeiro talvez no esfaquear pelas costas a vítima”.

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Moreira César: Ilustração da emboscada que matou Apulco de Castro, em 1883 | Arquivo/Revista da Semana

O crime teve repercussão nacional. Mesmo adversários de Apulco de Castro condenaram a atitude, afirmando que o imperador Pedro II, a quem o “Corsário” se referia sempre como “Pedro Banana”, poderia ter sido mandante daquela execução sumária. Segundo alguns historiadores, o assassinato colaborou para o fim da monarquia no Brasil, em 1889, quando o país virou uma república. Análises também argumentam que o crime só aconteceu daquela forma, sob as barbas de um oficial do Exército e em plena luz do dia, porque a vítima era um homem negro.

– Apulco era um redator inescrupuloso, que colecionava desafetos, e a violência contra jornalistas não era incomum. Mas o aspecto racial não deve ser menosprezado. Assim como acontece hoje, a vida negra valia menos naquela época, então a cor da pele pesou na decisão de matá-lo – explica o historiador Rodrigo Cardoso, professor do Instituto Federal do Sul de Minas e autor de “Pasquins: submundo da imprensa na corte imperial” (2012). – O crime termina em pizza. Ninguém foi punido pela morte do fundador do “Corsário”.

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Apulco de Castro: Fundador do jornal ‘Corsário’, morto por Moreira César | Arquivo/Revista da Semana

Treze anos separam o homicídio do Centro do Rio e a Guerra de Canudos (1896-1897), tema principal do livro-reportagem “Os sertões”. Na obra, Euclides da Cunha relata a morte de Apulco de Castro como um elemento para descrever a “energia selvagem” de Antonio Moreira César, o oficial que comandou a terceira expedição à Bahia com objetivo de massacrar o Arraial de Canudos. De um episódio a outro, o militar construiu reputação de homem certo do Exército para conduzir missões violentas durante um período de muita instabilidade no país.

Em 1891, já como tenente-coronel, ele era comandante do 9º Batalhão de Infantaria, em Salvador, quando da queda do então governador da Bahia, José Gonçalves da Silva. Em abril do ano seguinte, assumiu a liderança do 7º Batalhão, no Rio, e, em dezembro, sufocou uma sublevação contra o governo do estado, em Niterói. Entre 1892 e 1893, Moreira César combateu tropas rebeldes da Marinha que promoveram a Revolta da Armada. Ele planejou e liderou a retomada da Ilha de Villegagnon e da Ilha do Governador, então ocupadas pelos amotinados.

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Imagem da Revolta da Armada, no Rio, em 1991 | Arquivo

Anos mais tarde, na Revolução Federalista, o oficial mostrou sua face mais cruel. Enviado para conter a insurreição no Sul do país, Moreira César desembarcou com suas tropas legalistas na cidade de Desterro, atual Florianópolis, em Santa Catarina, no dia 19 de abril de 1894. Nomeado interventor do estado pelo presidente Floriano Peixoto, ele reprimiu a revolta com mão de ferro e promoveu o chamado “ajuste de contas”, ordenando dezenas de execuções. Entre os mortos, havia deputados estaduais e até mesmo militares, como o Barão de Batovi, um herói da Guerra do Paraguai, que morreu fuzilado, abraçado a seu filho.

“Os fuzilamentos que ali se fizeram, com triste aparato de imperdoável maldade, dizem-no de sobra”, escreveu Euclides da Cunha ao traçar em seu livro o perfil do algoz nascido no município de Pindamonhangaba, São Paulo, em 1850, filho de um padre e uma beata.

No dia 6 de fevereiro de 1897, Moreira César desembarcou em Salvador para atacar o Arraial de Canudos, no interior da Bahia, onde ficava a comunidade independente de cerca de 25 mil moradores liderados por Antonio Conselheiro. O oficial comandava a terceira expedição com a missão de massacrar o povoado. Em “Os Sertões”, o autor o retrata como um homem “de figura diminuta” e “organicamente inapto para a carreira que abraçara”. O livro atribui ao militar adjetivos como “tenaz, paciente, dedicado”, além de “impávido, cruel e vingativo”.

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A vila de Canudos, no interior da Bahia, que virou alvo do governo | Flávio Barros/Museu da República

“Em sua alma a extrema dedicação esvaía-se no extremo ódio, a calma soberana em desabrimentos repentinos e a bravura cavalheiresca na barbaridade revoltante”, afirma Euclides da Cunha. “Tinha o temperamento desigual e bizarro de um epilético provado, encobrindo a instabilidade nervosa de doente em placidez enganadora”.

Moreira César havia sido diagnosticado com epilepsia anos antes, mas, segundo textos históricos, sua condição piorou durante a campanha contra Canudos. De acordo com estudos da neurologista e pesquisadora Elza Maria Targas Yacubian, aquele foi um dos casos em que a doença de fundo nervoso pode ter mudado o curso da história. Na linha desta hipótese, as crises epiléticas prejudicaram o julgamento do coronel, que teria ordenado uma ofensiva precipitada ao arraial baiano, causando a derrota das tropas legalistas.

Os soldados invadiram o povoado e chegaram perto de conquistá-lo, mas foram repelidos no contra-ataque dos locais. Em meio a um encarniçado combate, o sanguinário militar, lutando na linha de frente, foi alvejado no abdôme. Ele morreu doze horas depois, na madrugada de 4 de março de 1997, afirmando que a ofensiva deveria continuar. Há quem diga que, não fosse esse fracasso em Canudos, e sua consequente morte, Moreira César poderia ter substituído Floriano Peixoto na Presidência da nossa ainda infantil República.

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Moradores de Canudos rendidos após fim de confronto, em 1897 | Arquivo

Fonte: O Globo