Ex-combatente João Amaro dos Santos, 95 anos, foi o primeiro a ser vacinado em Nilópolis. — Foto: Divulgação

O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva sugeriu que o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, convoque uma reunião de emergência do G20 para discutir uma distribuição mais equânime das vacinas. A cena é improvável. A pandemia do novo coronavírus disparou uma corrida das nações pelo desenvolvimento de imunizantes – e pela influência geopolítica que decorre desse poder.

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Quando a Rússia anunciou que já tinha concluído o desenvolvimento de uma vacina contra a Covid-19, em 8 de agosto de 2020, o recado ficou claro já no batismo do imunizante. No contexto da corrida espacial, com o mundo polarizado entre soviéticos e americanos, Sputnik V foi o nome do primeiro satélite a colocar animais em órbita.

Na batalha das vacinas, a Rússia não jogou de igual para igual. A Sputnik, embora venha se mostrando eficaz, não cumpriu todos os protocolos antes do lançamento. “A forma que eles escolheram foi bem heterodoxa”, afirma o médico e advogado sanitarista Daniel Dourado, pesquisador do Instituto de Direito e Saúde da Universidade de Paris e do Centro de Estudos e Pesquisas em Direito Sanitário da USP (Universidade de São Paulo). “Registraram a Sputnik antes de fazer a fase 3 [do desenvolvimento]. Ainda bem que tudo indica que a vacina é eficaz. Mas eles apostaram alto”, completa.

Se o lançamento foi com boa dose de marketing político, apresentando a vacina como se a Rússia estivesse assumindo uma liderança tecnológica para salvar a humanidade, a partir de então o que se viu foi o governo de Vladimir Putin fazendo do imunizante um poderoso instrumento de influência, ampliando sua ascendência sobre países “beneficiados”.

Assim, antes mesmo de priorizar sua população, foram firmados acordos com 39 países, segundo informações do fundo responsável pela comercialização do produto. Na América Latina, nove países aprovaram, até o momento, o uso da Sputnik V. Argentina, Bolívia, México, Nicarágua, Paraguai e Venezuela já estão aplicando a vacina.

“A Rússia, até com doações de vacina, está usando isso como instrumento de soft power”, analisa o cientista político Márcio Coimbra, coordenador da pós-graduação em Relações Institucionais e Governamentais da Faculdade Presbiteriana Mackenzie Brasília. “Eles sabem exercer [esse tipo de diplomacia] e têm feito isso com muita eficácia nos últimos tempos”, completa.

O caso russo não é isolado. China e Índia também desenvolveram seus imunizantes e despontaram como fornecedores em potencial para os países em desenvolvimento. “A tentativa de ampliar a área de influência usando biotecnologia já estava em curso antes da vacina. Com ela, ficou evidente que se trata de um espaço de acumulação do capital valiosíssimo, de influência geopolítica muito importante”, pontua Dourado.

De forma gratuita, a China já teria se comprometido a enviar cerca de 4 milhões de doses a outros países. A Índia, por outro lado, já distribuiu quase 7 milhões, possibilitando que países vizinhos como Paquistão, Nepal, Sri Lanka e Butão começassem seus programas de vacinação.

Nos casos chineses e indianos, além da vacina em si há outro fator importante a ser considerado: eles já são grandes fornecedores mundiais do IFA, sigla para Ingrediente Farmacêutico Ativo. Ou seja: mesmo antes da pandemia, já produziam esses insumos para laboratórios europeus e norte-americanos – e seguem fazendo no caso dos imunizantes de Covid-19.

“Por mais que se tome a vacina feita nos Estados Unidos, o IFA é indiano ou chinês. Esses dois países, portanto, têm uma vantagem comparativa em relação aos outros. E países aliados deles que estejam produzindo vacinas levam vantagem na distribuição mundial”, acrescenta Coimbra.

Tecnologia de ponta e políticas estatais

Para os especialistas ouvidos pela CNN, o cenário da disputa pelas vacinas escancara a desigualdade global. As vacinas de ponta, com tecnologia mais avançada, estão restritas aos países mais desenvolvidos.

“Países centrais do capitalismo têm capacidade de compra e distribuição muito superior, com quatro, cinco vezes a quantidade da população de vacinas compradas”, diz Dourado. “Por outro lado, cerca de 100 países não têm nenhuma, dependem de doações e do consórcio da OMS (Organização Mundial de Saúde).”

Dourado avalia que enquanto a Rússia apostou em agilidade e a China em quantidade, os Estados Unidos atuaram “na fronteira do desenvolvimento tecnológico”. “A Pfizer e a Moderna têm tecnologias novíssimas, são as primeiras desenvolvidas com tecnologia de RNA. O interesse é diferente”, argumenta. “Os laboratórios chineses e indianos, até pelo preço, devem buscar ser os grandes fornecedores mundiais, não para os países ricos, mas para a grande maioria das nações”, completa.

A China, por sua vez, vem se posicionando globalmente não só com a Coronavac,  distribuída no Brasil graças à parceria firmada com o Instituto Butantan. “Os chineses têm mais de uma vacina desenvolvida e fomentada pelo governo chinês, com potencial grande de distribuição, especialmente para países pobres”, prossegue Dourado. “Estão ampliando a esfera de influência.”

Já os outros players mundiais da corrida pela vacina, os grandes laboratórios norte-americanos e europeus, não estão, neste momento, com penetração forte nos países do mundo em desenvolvimento.

Para Coimbra, isso demonstra que, em primeiro lugar, eles estão “fazendo a imunização de seu próprio país”. Há ainda o fato de serem empresas com menos dependência estatal – apesar de terem financiamentos públicos para desenvolvimento de pesquisas.

“No caso de Rússia e China, estamos falando de política governamental, de realmente usar a vacina como longa manus (executor de ordens) do governo e instrumento de soft power”, explica ele.

Brasil no fim da fila

Os especialistas culpam o governo federal brasileiro pela pouca oferta de vacina disponível no país. Para eles, o Brasil não agiu com inteligência e diplomacia necessárias na hora de, com antecedência, se precaver e firmar acordos. Isso teve um preço: o fim da fila.

“[Houve] omissão deliberada do governo federal. Até o fim de 2020 eles acreditavam que fosse ser possível uma imunidade de rebanho sem vacina, que não haveria segunda onda. Apostaram nisso”, afirma Dourado. “Agora, nessa tentativa de correção de rumo, estamos em um cenário de escassez mundial de vacinas”, completou.

A corrida por mais doses vai além do Planalto e do Ministério da Saúde. O Congresso Nacional pediu autorização especial para comprar vacinas que não estão sendo usadas nos Estados Unidos – o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), enviou uma correspondência à vice-presidente americana, Kamala Harris, fazendo a solicitação. Além dessa ação, a senadora Kátia Abreu (PP-TO), presidente da Comissão de Relações Exteriores da Casa, anunciou que nesta semana fará um apelo formal a outros países por mais vacinas.

“Foi um erro estratégico do governo brasileiro, que não fez a opção de compra lá atrás, preferindo investir no suposto tratamento precoce”, diz Coimbra. “Outros países passaram na frente, e falo especificamente dos casos da [vacina da] Pfizer e da Janssen”, completa.

Sobre as críticas, o Itamaraty informou em nota que, atuando com o Ministério da Saúde, “participa permanentemente dos esforços para a importação de vacinas contra a Covid-19, inclusive facilitando as tratativas no âmbito técnico, por meio dos canais diplomáticos junto a outros governos”. O texto cita como exemplo o “contrato assinado com a GAVI (parceria público-privada para massificação das vacinas) que viabiliza sua participação na Covax Facility, arranjo autofinanciado do qual participam 190 países”, em setembro de 2020.

A nota também diz que o governo brasileiro concluiu os procedimentos para importação de vacina da Índia. “Em contatos com o governo chinês, realizados pelo embaixador brasileiro em Pequim e pelo ministro Ernesto Araújo com o chanceler chinês, foi viabilizada a importação de Ingrediente Farmacêutico Ativo (IFA) para a produção, pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), da vacina da AstraZeneca/Universidade de Oxford contra a Covid-19”, prossegue o texto. O comunicado conclui citando a missão brasileira a Israel, no começo de março, para “potencial de desenvolvimento conjunto de tecnologias, terapias e vacinas para a prevenção e tratamento da Covid-19”.

Neste domingo (21), o Ministério da Saúde admitiu que o Instituto Serum, que produz a vacina AstraZeneca/Oxford, pode atrasar a entrega das doses.

Turismo da vacina

Em Moscou, todo mundo pode tomar vacina de graça, até estrangeiros – e ainda ganha um sorvete. Cuba anunciou que o seu próprio imunizante, batizado de Soberana 2, também será oferecido para todos, inclusive turistas. Em um mundo ainda de virtualmente fronteiras fechadas para viagens internacionais, essas iniciativas são vistas com estranheza.

“Tendo a achar que é mais um marketing político. Não me parece que haja espaço para um turismo de vacina. Imagina se os países vão abrir para pessoas não vacinadas, sem controle”, diz Dourado. “Se ocorrer vai ser em proporção pequena, gente mais rica. Acho difícil que ocorra em escala.”

Coimbra acredita que a alternativa pode ser utilizada “especialmente [por moradores] de lugares onde não estão chegando a vacina, como no Brasil”. “Já vimos brasileiro, alguns que têm relação especial com alguns países [como dupla cidadania], viajar para o exterior para serem vacinados e isso vai continuar, principalmente com essa demora cada vez maior para ocorrer a vacinação no Brasil”, afirma. “Claro que depende das fronteiras estarem abertas, mas existem exceções para alguns brasileiros.”

Fonte: CNN

Marcelo Barros
Jornalista (MTB 38082/RJ). Graduado em Sistemas de Informação pela Universidade Estácio de Sá (2009). Pós-graduado em Administração de Banco de Dados (UNESA), pós-graduado em Gestão da Tecnologia da Informação e Comunicação (UCAM) e MBA em Gestão de Projetos e Processos (UCAM). Atualmente é o vice-presidente do Instituto de Defesa Cibernética (www.idciber.org), editor-chefe do Defesa em Foco (www.defesaemfoco.com.br), revista eletrônica especializado em Defesa e Segurança, co-fundador do portal DCiber.org (www.dciber.org), especializado em Defesa Cibernética. Participo também como pesquisador voluntário no Laboratório de Simulações e Cenários (LSC) da Escola de Guerra Naval (EGN) nos subgrupos de Cibersegurança, Internet das Coisas e Inteligência Artificial. Especializações em Inteligência e Contrainteligência na ABEIC, Ciclo de Estudos Estratégicos de Defesa na ESG, Curso Avançado em Jogos de Guerra, Curso de Extensão em Defesa Nacional na ESD, entre outros. Atuo também como responsável da parte da tecnologia da informação do Projeto Radar (www.projetoradar.com.br), do Grupo Economia do Mar (www.grupoeconomiadomar.com.br) e Observatório de Políticas do Mar (www.observatoriopoliticasmar.com.br) ; e sócio da Editora Alpheratz (www.alpheratz.com.br).