Hermes Menna Barreto Laranja Gonçalves

Coronel

“Be pratical, expect the impossible” (FRIEDMAN, 2010).

No último artigo, busquei destacar a importante evolução que significou a decisão da Bielorrúsia de passar a cooperar com os seus vizinhos, os russos. Tal realinhamento, ocorrido em 2020, e que em face da grave crise sanitária que ainda varria o mundo, passou relativamente despercebido, pode ter desencadeado a presente crise de segurança internacional em curso. Por quê? A meu ver, com a cooperação bielorrussa, a vasta (para os padrões europeus) fronteira norte ucraniana ficou aberta para uma invasão russa, o que realmente ocorreu no último 24 de fevereiro.

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Com isso em mente, este artigo pretende apresentar aos nossos leitores, civis e militares, um dos fatores teóricos que influenciaram a decisão de realizar a atual ofensiva russa à Ucrânia, qual seja: o pensamento geopolítico presente no Eurasianismo russo moderno (também conhecido como Neoeurasianismo), conforme defendido por Alexandr Dugin e outros cientistas políticos russos, que passarei a denominar simplesmente “Eurasianismo”.

Assim sendo, o Eurasianismo é uma corrente filosófica russa que remonta ao Século XIX. Nesta época, sob a dinastia Romanov, o objetivo era prover uma razão de ser para a contínua expansão do Império Russo, que, de grosso modo, ia desde o Rio Vístula, na Polônia, e alcançava as praias geladas do Pacífico Norte. Tal visão ganhou robustez teórica logo após a Primeira Guerra Mundial, notadamente, entre os emigrados russos fugitivos da Revolução Bolchevique, os quais cristalizaram a ideia de que os russos não seriam europeus ou asiáticos, mas tão somente eurasianos.

No decorrer do século XX, o eurasianismo foi perdendo forças, vindo a ganhar impulsão com o desmonte da União Soviética, em 1991. Como consequência dessa “maior catástrofe geopolítica do século XX”, nos dizeres de Vladimir Putin, o território russo refluiu para sua menor extensão desde o século XVII.

Imagem 1 – Mapa topográfico da Rússia

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Despojada de territórios tampões a sul, e especialmente a oeste, a Rússia sente redobrar a ancestral insegurança geopolítica, característica da sua cultura estratégica. Esta faz com que, de modo renitente, sucessivos governantes sediados originalmente nas florestas moscovitas busquem atingir militarmente fronteiras naturais que os livrem do fantasma da invasão terrestre.

Em face dessa insegurança ancestral e bem antes desse ambiente descrito por Putin como apocalíptico para o russo médio, as ideias dos defensores do Eurasianismo voltaram a circular, ainda no regime soviético, com destaque para o pensamento de Lev Gumilev . Este, relativamente pouco conhecido no Ocidente, teorizou de forma própria e conveniente sobre dois conceitos antropológicos: a etnogênese e a passionaridade.

A etnogênese, bem estudada pelos antropólogos, seria o processo de formação e desenvolvimento de uma aglomeração humana que começaria a se ver, ou a ser vista (ou reconhecida), como um grupo étnico distinto dos demais. Já o conceito de passionaridade, elaborado por Gumilev, é descrito por ele como sendo uma premência interna irresistível para desenvolver atividades finalísticas ou a capacidade de empreender um esforço sustentável para atingir um objetivo.

Gumilev acreditava que cada grupo histórico passaria por estágios sucessivos, desde a origem ao clímax, antes de decair rumo à inércia. Além disso, dizia que quando a passionaridade de um ethnos atingisse seu pico, ela produziria líderes brilhantes que possibilitariam grandes conquistas civilizacionais.

O Eurasianismo recente absorveu todo esse imaginário histórico e antropológico para tentar reverter a aparente baixa passionaridade russa. Em seguida, Dugin busca a ajuda de uma série de teóricos geopolíticos ocidentais, como Mahan (Teoria do Poder Naval), Mackinder (Teoria do Poder Terrestre), Haushofer (Teoria dos Grandes Espaços) e Spykman (Teoria das Fímbrias), para completar o ideário eurasiano.

Imagem 02 – Esquema teórico do Eurasianismo moderno

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Além disso, a proposta capitaneada por Dugin absorve toda uma tradição de pensamentos contra a hegemonia dos Estados Unidos da América (EUA), e logo, do Ocidente. Tais pensamentos, na visão de Dugin, eram vistos como o centro de um suposto Poder Marítimo (conceito de Mackinder) em disputa contínua contra um Poder Terrestre, que hoje seria a chamada Novorossiya eurasiana (DUGIN; CARVALHO, 2012).

Assim sendo, o pensamento geopolítico eurasiano, conforme elaborado por Dugin e quase certamente auxiliado por militares de alta patente das Forças Armadas russas (com destaque para o General Leonid Ivashov, hoje opositor da guerra com a Ucrânia), nada mais é do que um amálgama do pensamento dos geopolíticos da tradição clássica, acima mencionados, com destaque para os eurasianos históricos e para a igreja ortodoxa russa.

O auxílio, ou a contribuição dos militares russos ao pensamento formal de Dugin, não é algo secundário. Muito pelo contrário. É possível que a tese de Dugin, de caráter muito mais místico e esotérico, corresponda a uma visão geopolítica “real”, muito mais pragmática e, portanto, perigosa, para o Ocidente livre, do que a “utopia” do filósofo.

Finda essa breve digressão histórica, vem a questão central: o que dizer, resumidamente, do receituário geopolítico prático proposto pelos eurasianos? Sobre isso, preciso me debruçar, principalmente, sobre a obra literária mais importante acerca da visão geopolítica do Eurasianismo russo, que vem a ser o livro “Fundamentos da Geopolítica: o futuro geopolítico da Rússia”. Editado pela primeira vez em 1997, o livro, que somente teve sua tradução efetivada para o inglês em 2017, deveria ser mais divulgado, pois há muitos relatos de que seria uma leitura obrigatória nas escolas militares da Rússia, mormente naquelas de nível mais elevado.

Imagem 03 – Capa de uma edição russa de “Os Fundamentos da Geopolítica”

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A portentosa obra de Dugin, na única tradução em inglês encontrada, com 451 páginas, apresenta os pilares de uma nova e preocupante perspectiva geopolítica russa, que se assemelha à proposta de uma nova “Geoideologia” (um “dever ser” geopolítico).

Em que pese estarem longe de serem aplicadas à risca, é possível que as teorias de Dugin estejam sendo usadas como diretrizes teóricas para a redação, sempre com discrição, de diversos documentos oficiais russos, como a Concepção de Segurança Nacional da Federação Russa, de 2016. Esse documento, publicado regularmente, busca formalizar a aplicação de uma Grande Estratégia ao Estado russo que permita que esse ator atinja seu principal objetivo no curto prazo: ser reconhecido, novamente, como uma Grande Potência.

Para a compreensão básica do projeto geopolítico eurasiano, é preciso entender que ele diz respeito a uma configuração política que emergirá após uma derrota ou colapso da OTAN e de outros atores internacionais importantes, em um futuro hipotético, resultando numa ordem internacional aparentemente multipolar.

Dessa forma, os eurasianos pretendem que o planeta seja dividido em quatro cinturões geográficos ou zonas meridionais, distribuídas de norte a sul: a zona Anglo-Americana, a zona Euro-Africana, a zona Rússia-Ásia Central e a zona do Pacífico (GONÇALVES, 2014).

Sendo considerado hegemônico no seu “espaço” (a zona Rússia-Ásia Central), o Império Eurasiano (ou Novorossiya) deve executar ações geoestratégicas que resultem no estado final desejado para eles, ou seja, a Rússia hegemônica sobre todos os outros espaços. Para tanto, os eurasianos delinearam uma série de objetivos a serem perseguidos para cada um dos chamados “Eixos Estratégicos”. Estes seriam em número de 03 (três) ou 04 (quatro), dependendo do teórico eurasiano proponente: a) Eixo Moscou-Berlim; b) Eixo Moscou-Tóquio; c) Eixo Moscou-Teerã (na versão de Dugin) e d) Eixo Moscou-Pequim-Nova Delhi (versão dos eurasianos da vertente militar russa) (DUNLOP, 2004).

Deixarei para outra oportunidade a descrição e análise sumária de todos os eixos de atuação. Dessa forma, vou focar apenas no Eixo Moscou-Berlim, haja vista a sua importância atual, por contemplar a situação de dois atores em voga na atual crise: Bielorrússia e Ucrânia. É importante lembrar que o ponto de partida para a visão de mundo eurasiana, para se tornar realidade, assume que os Estados Unidos e a Grã-Bretanha (os aliados “marítimos”) estejam divididos e em conflagração interna, além de estarem separados de seus antigos aliados atlânticos (OTAN). Com isso, com a caracterização de uma fissura na Aliança Atlântica, seus membros estariam incapacitados de esboçar qualquer reação no cenário internacional.

Para as ações no Eixo Moscou-Berlim, considero que a ideia principal seja reavivar o pensamento do geopolítico alemão Haushofer, segundo o qual tanto a Alemanha quanto a Rússia seriam potências terrestres. Paradoxalmente, vale mencionar que o famoso geopolítico da Alemanha Nacional-Socialista deplorou o ataque de Hitler à União Soviética, em 1941, por achar que eram aliados naturais que estavam se enfraquecendo em uma luta mortal.

Retomando essa visão, Dugin vislumbra que, em dado momento futuro, a Alemanha seria a potência hegemônica, talvez em coligação com a França, e a força dominante de uma União Europeia cada vez mais sem laços com a Aliança Atlântica. Nesse sentido, a Rússia se esforçaria para atrair a Alemanha para fora da OTAN, ou seja, ser “finlandizada” , por meio da proposta de devolução do enclave de Kaliningrado, acrescido de áreas circunvizinhas. Tais áreas a serem devolvidas à Alemanha, às expensas de território atualmente da Polônia, corresponderiam à antiga Prússia Oriental, sendo reconhecidas como historicamente germânicas.

No prosseguimento desse ajuste a oeste, Dugin aponta como necessária uma repartição de áreas de influência de acordo com a religião predominante em cada setor considerado, com algumas exceções. Desse modo, as regiões católicas e protestantes, à exceção da Polônia, ficariam sob a tutela europeia, incluindo os países nórdicos. Já as regiões com maioria cristã ortodoxa ficariam sob a influência de Moscou.

Assim, pelo pensamento eurasiano, a Polônia, Lituânia, Letônia e Finlândia, embora na esfera de influência russa, teriam um status diferenciado, também em respeito à sua história. Já a Estônia, paradoxalmente, talvez em respeito a suas raízes ligadas aos Cavaleiros Teutônicos e outras potências europeias do passado, ficaria sob influência europeia.

Quanto à região dos Balcãs, Alexandr Dugin sugere que sua maior parte, incluindo a Grécia, deveria fazer parte do Império Eurasiano, só permanecendo com a União Europeia os países de forte confissão católica como a Croácia e a Eslovênia. Neste ponto, não posso deixar de observar que, com essa proposta realizada, os eurasianos alcançariam o objetivo máximo da Rússia imperial, ou seja, atingir, sem obstáculos, os “mares quentes” do Mediterrâneo.

Devo falar também sobre a Turquia, que, ao menos na ortodoxia de Dugin, não seria parceiro geopolítico, mas um rival a ser mantido, sempre que possível, dividido e em conflagração interna. Assim sendo, os famosos “estreitos” e, principalmente, a cidade de Constantinopla, cedo ou tarde, cairiam sob controle russo/eurasiano.

Imagem 4 – O Mundo sob a hegemonia eurasiana

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Fonte: FRANCIS, 2021.

Para a compreensão básica do projeto geopolítico eurasiano, é preciso entender que ele diz respeito a uma configuração política que emergirá após uma derrota ou colapso da OTAN e de outros atores internacionais importantes, em um futuro hipotético, resultando numa ordem internacional aparentemente multipolar.

Deixei para tratar no final dos personagens de destaque, no momento atual, na visão eurasiana: a Bielorrúsia e a Ucrânia. Esta última, inclusive, mantida em persistente conflito com separatistas russos, desde 2014, na agora famosa região da Bacia do Don (Donbass), após a tomada russa da Península da Crimeia.

Segundo o pensamento eurasiano, a Ucrânia seria essencial ao projeto da Novorossiya, haja vista ser considerada, até hoje, pela maioria dos russos, o berço de sua identidade nacional e, nos dizeres recentes de Vladimir Putin, parte inseparável da Rússia (PUTIN, 2022):

“Quero mais uma vez ressaltar que a Ucrânia, para nós, não é só um país vizinho. É uma parte de nossa história, e espaço espiritual, que não se pode subtrair. São nossos companheiros próximos, entre os quais não há somente colegas, amigos e ex-companheiros do serviço militar, mas (também) parentes. Pessoas com laços de sangue e de família conosco. Há muito tempo, os habitantes das antigas terras russas do sudoeste se chamavam de russos e ortodoxos. Foi assim até o século XVII, quando parte de tais territórios se uniram ao Estado russo, e também depois” (PUTIN, 2022)

Putin deixa de mencionar que, em certo período histórico, entre o Medievo (Rússia de Kiev) e a expansão por ele citada no século XVII, a maior parte da Ucrânia pertenceu a uma potente Confederação polaco-lituana, que floresceu entre os séculos XIV e XVII.

No futuro, visualizo que a Ucrânia e a Bielorrúsia, considerados pelos eurasianos como sendo partes integrantes e inegociáveis do espaço russo, deverão ser novamente anexados. Na pior hipótese, as porções ortodoxas devem passar para a Novorossiya e as áreas católicas devem retornar à soberania polonesa, também como uma forma de concessão.

Trazendo a teoria acima para a práxis, é possível notar que o “agir” da Rússia em direção à Bielorrússia (cooptada) e à Ucrânia (compelida) estão em franca execução nos últimos anos. Conjectura-se, inclusive, que a cooptação da Ucrânia também estivesse garantida, até que os eventos da chamada Revolução Maidan, ocorrida em 2014, desviaram a “pátria mãe da Rússia” do seu destino, supostamente, sob a égide russa.

É certo que toda essa impactante proposta acima, em breves parágrafos, resumidamente, diz respeito a um “dever ser” teórico que, na prática, à primeira vista, pode ser muito difícil de ser levado a efeito, ainda mais porque iria contra outros projetos de globalização hegemônicos concorrentes, cada um mais agressivo que o outro, no que se refere a seus objetivos.

Não obstante, deve-se notar também que o Nacional-Socialismo (Nazismo) alemão tinha no pensamento geopolítico de Haushofer um ideário teórico amplo e complexo, certamente inalcançável. Tal fato notório, ao menos para os estadistas ocidentais, não impediu a Alemanha de tentar aplicá-lo, obtendo resultados desastrosos, por meio do planejamento estratégico do Estado (Reich) e das Forças Armadas Alemãs (Wehrmacht), entre 1936 e 1945.

Autor: Gonçalves, Hermes Menna Barreto Laranja. A Crise da Ucrânia e uma visão sobre a Geopolítica Contemporânea da Rússia. Observatório Militar da Praia Vermelha. ECEME: Rio de Janeiro. 2022.

 

Para saber mais:

    1. DUGIN, Alexandr. The Foundation of Geopolitics: the geopolitical future of Russia. Publicação independente, 2017. 451 p. (edição esgotada)
    2. DUGIN, Alexandre; CARVALHO, Olavo de. Os EUA e a Nova Ordem Mundial. Um debate entre Alexandre Dugin e Olavo de Carvalho, 2012.
    3. DUNLOP, John. B. Alexsandr Dugin´s Foundations of Geopolitics. In Democratizatsyia. Hoover Institute. 2004. Disponível em: http://www.4pt.su/en/conte nt/aleksandr-dugin%E2%80%99s-foundations-geopolitics. Acesso em 25/02/2022.
    4. FRANCIS, DIANE. Putin´s Rasputin. Diane Francis´s Blog. Disponível em: https:// dianefrancis.substack.com/p/putins-rasputin?utm_source=url. Acesso em 25/02/2022
    5. FRIEDMAN, George. The next 100 years: a forecast for the 21st century. Anchor, 2010
    6. GONÇALVES, Hermes L.M.B.L.O Eurasianismo: sua influência na política exterior russa pós-soviética e reflexos para a política de defesa do Brasil. Rio de Janeiro: Instituto Meira Mattos/ECEME. Dissertação de Mestrado. 2014. 132p.
    7. PUTIN, Vladimir. Discurso de Vladimir Putin sobre reconhecimento das repúblicas populares de Donetsk e Lugansk. Em Sputnik Brasil. 22 Fev 22. Disponível em: https://br.sputniknews.com/20220222/discurso-de-vladimir-putin-sobr e-reconhecimento-das-republicas-populares-de-donetsk-e-lugansk-21520017.html.