A nobre missão de proteger civis em áreas de conflitos armados vem enfrentando desafios de caráter cada vez mais perigoso, seja para a já naturalmente vulnerável comunidade civil, seja para o próprio peacekeeper no terreno. A origem da ameaça, que até então era de certa forma conhecida e tinha um determinado padrão de ação em alguns países africanos, incluindo mecanismos de alerta – Early Warning Systems – (ferramentas da missão de paz que fornecem sinais de que alguma intenção hostil contra civis está ocorrendo ou em vias de ocorrer), atualmente vem se tornando cada vez mais abrangente, dispersa, inesperada, fatal e injusta. Esse cenário impacta diretamente na credibilidade e na capacidade das missões em cumprir seus mandatos, causando baixas civis e de capacetes azuis e provocando a reação negativa da população local contra a presença daquela missão. No entanto, não podemos afirmar se há ou não um objetivo de bastidores intencional. Podemos apenas observar, nas mídias internacionais, a repercussão negativa e o desgaste da imagem da Organização nas operações de paz das Nações Unidas no entorno do continente africano.

Nos siga no Instagram, Telegram ou no Whatsapp e fique atualizado com as últimas notícias de nossas forças armadas e indústria da defesa.

Tomemos como exemplo para o presente artigo a República Democrática do Congo, onde se encontra a MONUSCO (Missão das Nações Unidas de Estabilização na República Democrática do Congo). A MONUSCO, que substituiu a antiga MONUC (Missão das Nações Unidas na República Democrática do Congo), está em território congolês desde 1º de julho de 2010, de acordo com a Resolução 1925 do Conselho de Segurança das Nações Unidas1. Sendo que sua antecessora operou naquele país de 30 de novembro de 1999, com a Resolução 1279 do Conselho de Segurança da ONU, até ganhar uma nova nomenclatura e tarefas adicionais2. Com essas missões extras, podemos dizer que a MONUSCO se tornou mais robusta em equipamentos, pessoal desdobrado e aporte financeiro, refletindo a nova etapa em que a operação acabava de adentrar. Nessa fase, a missão recebeu autorização oficial para fazer uso de todos os meios necessários a fim de cumprir seu mandato, principalmente no tocante à Proteção de Civis, entre outros objetivos3. Podemos inferir que essa decisão tem suas raízes nos acontecimentos históricos em que foram questionados a imagem e o papel das Nações Unidas em relação à inação dos capacetes azuis presentes no terreno nos genocídios de Ruanda, em 1994, e de Srebrenica, em 1995, eventos que levaram milhares de pessoas à morte. Dessa forma, surge a imperiosa necessidade da Organização de se preparar para evitar a repetição daqueles fatos, dos quais não devemos nos esquecer.

Desde então, a MONUSCO vem buscando cumprir seu mandato, enfrentando inúmeros desafios de ordem criminosa, fazendo uso dos sistemas de alerta a fim de planejar suas formas de dissuadir grupos armados a interromperem seus intentos e combatendo hostilidades contra a população civil. O temido grupo armado M23, cujo nome foi criado em 23 de março de 2009, data em que seria assinado um acordo de paz com o governo congolês em Kinshasa4, capital do país, foi debelado há alguns anos. Esse grupo rebelde, composto por antigos integrantes do Exército Nacional Congolês, provocou a morte de centenas de civis, espalhou o terror (principalmente nas províncias do leste congolês), provocou a fuga de milhares de pessoas e cometeu atrocidades em uma clara violação dos direitos humanos e do direito internacional humanitário. Dentre os atores que lograram sucesso no desmonte do grupo, podemos dizer que a MONUSCO teve papel fundamental, tendo à frente do componente militar o general brasileiro Carlos Alberto Santos Cruz, entre os anos de 2013 e 2015, e outros generais brasileiros que o sucederam.

Todavia, apesar de uma certa contenção do principal grupo armado do país, que em um momento declarou que sua atuação seria meramente política, outras centenas de grupos rebeldes continuavam atuando, tendo civis como seus principais alvos. Além disso, no corrente ano, a MONUSCO vem enfrentando um outro momento delicado de sua existência, uma vez que atualmente existem descontentamento e um clamor popular congolês exigindo a retirada imediata da missão daquele território, sob o argumento que de que ela se mostrou ineficiente na proteção de civis, principalmente no leste do país, na região dos grandes lagos, e contra o ressurgimento e fortalecimento do M23. A área que compreende os grandes lagos é rica em minerais e faz fronteira com vários países, entre eles Uganda e Ruanda. Há relatos de que o grupo armado ugandês ADF, sigla em francês para Forças Democráticas Aliadas, ultrapassa a fronteira de Uganda e tem uma forte atuação no território leste e nordeste do Congo contra a população civil, burlando claramente leis internacionais, fazendo uso de táticas terroristas e cometendo crimes contra a humanidade. O relatório 479 de julho de 2022 do Conselho de Segurança afirma que esse grupo possui ligações com o Estado Islâmico na África Central5 e vem se utilizando de artefatos explosivos improvisados em centros urbanos do Congo e nas regiões próximas, incluindo homens-bomba. A atuação criminosa contra civis vem se aperfeiçoando.

Como se não bastasse, há uma outra ameaça a civis proveniente de Ruanda: o apoio ao reaparelhamento do M23 por parte de antigos combatentes que fugiram para Ruanda em busca de abrigo pelo recrutamento de pessoas, incluindo menores de idade, para atuarem como combatentes no território congolês. Lembrando que o horror ocorrido, em 1994, naquele país ainda é apoiado por alguns elementos da etnia hutus que atualmente cruzam a fronteira em direção ao Congo, tendo também como alvos a população civil tutsi e hutus moderados que conseguiram escapar para o território congolês.

Desta feita, é possível observar o momento delicado pelo qual a MONUSCO passa. Além das baixas de seu pessoal (três capacetes azuis foram mortos e outros feridos em recentes confrontos)6, a liderança da missão vem igualmente sofrendo com as fake news constantemente disseminadas para a população contra a atuação da ONU, que teve seu porta-voz no Congo expulso do país após uma declaração pública e cujas palavras foram vistas como “indelicadas e inadequadas”7. Esse fato fortaleceu ainda mais a exigência da saída imediata da missão, sendo que seu término definitivo, com as condições mínimas exigidas pelas Nações Unidas para deixar o país, está previsto para o fim de 20248. O pronto e correto uso da comunicação estratégica pode ser um fator paliativo que poderá prover uma sobrevida à missão. Da mesma forma como foi pontuado pelo comandante anterior do componente militar da MONUSCO, general brasileiro Augusto Costa Neves, que “não existe solução puramente militar” para o conflito no Congo, assim também afirmou o pesquisador sênior do Instituto Sul-Africano de Assuntos Internacionais, o brasileiro Gustavo de Carvalho, em entrevista recente que “a capacidade não só de resolver militarmente as questões que estão acontecendo, particularmente no leste do país, mas de se engajar, de uma forma mais eficiente, em discussões políticas”9. Essas observações levam-nos a refletir sobre o papel dos outros atores envolvidos na proteção de civis e na idealizada estabilidade daquele país, sejam congoleses, sejam estrangeiros. É importante destacar que o Congo é testemunha da presença das Nações Unidas em seu território desde 1999.

No entanto, existem questões pairando no ar: até quando a MONUSCO vai suportar essa pressão? Como deter os crescentes ataques terroristas na região? Qual o interesse por trás dessas ações? Como proteger os mais vulneráveis? Haverá apoio político dos países do entorno no combate aos terroristas, além das Forças Regionais do Leste Africano? Como será realizada a coordenação entre a MONUSCO e essas Forças Regionais, uma vez que não há subordinação entre elas? A Brigada de Intervenção da MONUSCO tem a capacidade de lutar contra o terrorismo? Como assegurar a segurança dos capacetes azuis que estão na linha de frente? Como manter a moral da tropa elevada? Haverá uma adequação no treinamento dos futuros capacetes azuis focado mais em terrorismo?

O próximo comandante da força militar da operação de paz no Congo, o Force Commander, que poderá continuar sendo um oficial brasileiro, terá certamente um desafio ainda maior do que seus antecessores devido à “alta temperatura” corrente do terreno, que aparentemente não será apaziguada tão cedo. O sentimento anti-ONU, que contribui fortemente para a exigência popular de saída da missão, a propaganda dos causadores desse ambiente de hostilidade e instabilidade e seus interesses escusos nessa retirada das tropas de paz, as ligações estreitas com grupos declaradamente terroristas atuando na África, que não utilizam as regras do combate justo, trazem mais obstáculos à já difícil, e no Congo atual quase impossível, tarefa de proteger civis dentro desse cenário de terror crescente.

_______________________________________

1 Disponível em: https://peacekeeping.un.org/en/mission/monusco acesso em: 20 de set. 2022.

2 Disponível em: https://peacekeeping.un.org/mission/past/monuc/ acesso em: 20 de set. 2022.

3 Disponível em: https://peacekeeping.un.org/en/mission/monusco acesso em: 20 de set. 2022.

6 Disponível em: https://press.un.org/en/2022/sc14985.doc.htm acesso em 20 de set. 2022.

Autor: Cap Camila de Almeida Paiva
Fonte: eBlog do EB
Marcelo Barros, com informações do Exército Brasileiro
Jornalista (MTB 38082/RJ). Graduado em Sistemas de Informação pela Estácio de Sá (2009). Pós-graduado em Assessoria de Comunicação (UNIALPHAVILLE), MBA em Jornalismo Digital (UNIALPHAVILLE), Administração de Banco de Dados (UNESA), pós-graduado em Gestão da Tecnologia da Informação e Comunicação (UCAM) e MBA em Gestão de Projetos e Processos (UCAM). Atualmente é o vice-presidente do Instituto de Defesa Cibernética (www.idciber.org), editor-chefe do Defesa em Foco (www.defesaemfoco.com.br), revista eletrônica especializado em Defesa e Segurança, co-fundador do portal DCiber.org (www.dciber.org), especializado em Defesa Cibernética. Participo também como pesquisador voluntário no Laboratório de Simulações e Cenários (LSC) da Escola de Guerra Naval (EGN) nos subgrupos de Cibersegurança, Internet das Coisas e Inteligência Artificial. Especializações em Inteligência e Contrainteligência na ABEIC, Ciclo de Estudos Estratégicos de Defesa na ESG, Curso Avançado em Jogos de Guerra, Curso de Extensão em Defesa Nacional na ESD, entre outros. Atuo também como responsável da parte da tecnologia da informação do Projeto Radar (www.projetoradar.com.br), do Grupo Economia do Mar (www.grupoeconomiadomar.com.br) e Observatório de Políticas do Mar (www.observatoriopoliticasmar.com.br) ; e sócio da Editora Alpheratz (www.alpheratz.com.br).