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Em 1835 o estudioso francês Alexis de Tocqueville escreveu em seu livro mais famoso, A Democracia na América, algo que pode ser relacionado com o período da Guerra Fria, de 1947 a 1991. O autor praticamente enxergou o futuro ao registrar que o mundo seria impactado por duas grandes potências: uma o influenciaria pela enxada, pela produtividade e engenhosidade; a outra ganharia expressão pela espada, vale dizer, pela centralização, força e violência.

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Os países sobre os quais Tocqueville se referia são os Estados Unidos e a Rússia. O primeiro seria a terra da oportunidade e liberdade individual, que procuraria espalhar a democracia como forma suprema de governo pelo exemplo e virtude. A Rússia, sempre sob comportamento imperial, não deixaria de demonstrar desconfiança e temor perante países mais fortes. Por isso, Moscou, ou São Petersburgo, utilizaria sentimento de insegurança internacional para alargar cada vez mais suas fronteiras como antídoto para seus temores geopolíticos.

Ao iniciar o século XX os Estados Unidos eram a mais rica economia mundial e o maior receptor de imigrantes, muitos deles(as) provenientes do leste europeu: russos(as) de todas as culturas, poloneses(as), húngaros(as), etc.. A Rússia não somente era exportadora de gente para o Novo Mundo, mas se mantinha sob um regime político carcomido e apegado a uma ideia de vida bastante reacionária, o que alimentava ressentimentos de todos os tipos e, certamente, serviu de combustível para os(as) partidários(as) da Revolução de Outubro, comunista, de 1917.

Em grande parte, Tocqueville acertou em sua “profecia”, visto que após a Segunda Guerra Mundial, de fato, o mundo foi governado por duas superpotências, Estados Unidos e União Soviética, que passou a existir a partir do “chassi” deixado pelo velho Império Russo para erguer uma estrutura multinacional que abrangia o leste europeu e Ásia central, sendo todo esse povo ordenado a partir de uma cabeça centralizadora e coercitiva, o Kremlin.

Ainda que se fale em propaganda e artifícios ideológicos para angaria poder e prestigio internacionais, os Estados Unidos se consideravam os reais promotores do ideal democrático e liberdade como valores universais e, para isso, eles fariam intervenções em outros países, caso fosse necessário. Já a União Soviética não se faria de rogada: promoveria seus valores socialistas por meios considerados “favoráveis à paz”, como salientava Josef Stalin.

Da mesma forma que o poder americano, o soviético também não deixou de intervir em outros países para assegurar o socialismo ou afastar medidas que pudessem ser consideradas antissoviéticas. Assim, Moscou ordenou o emprego de força na Polônia, em 1954, e na antiga Tchecoslováquia, em 1968; isso em contraposição às intervenções estadunidenses na Guatemala, também em 1954, e no apoio à deposição de Mohammed Mossadegh, em 1952, no Irã.

Enfim, eram imperativos da Guerra Fria, sob o qual a verdade política e a pureza das iniciativas nem sempre tinham lugar. O que devia imperar era a razão de Estado e instrumentos geopolíticos para subordinar todos os demais sob o comando de Moscou ou de Washington. Mesmo que houvesse um ou outro país rebelde, o certo seria sua anulação como ator suficiente para sobreviver entre os dois gigantes: essa foi a sorte, ou infortúnio, de China, Iugoslávia e Índia, que posteriormente procuraram constituir seu próprio clube, dos Não Alinhados, de 1961, que também abriu inscrição para Egito, Indonésia e demais descontentes.

Essas citações históricas são necessárias para reforçar o intuito deste pequeno texto. Isso porque, em 1904, apareceu artigo, clássico para os estudos de política internacional que, de alguma forma, combina com o apontado por Tocqueville. Naquele ano, o professor da Universidade de Oxford, Halford Mackinder, defende em seu A Geografia como Pivô da História a máxima de que Estados Unidos (sem citar esse país) e Rússia (ou União Soviética) teriam que cumprir uma espécie de lei da natureza, da política internacional.

Seria a premissa de que no desdobramento histórico, na história da política internacional, sempre há uma potência marítima contra outra, continentalista ou territorial. Essa lei da natureza política já havia existido na antiguidade quando Esparta, potência territorial, enfrentou Atenas, potência naval. Da mesma forma, se deu com o Reino Unido, dono dos mares, contra a França napoleônica que tencionava dominar o continente europeu. É claro que o raciocínio de Mackinder emprega outros fatores, mas isso não importa agora.

A questão é que para o pensador inglês essa lei deve ser exercida de tempos em tempos. Por isso, na Guerra Fria era esperado que ela fosse encontrada no enfrentamento entre Estados Unidos, herdeiros do Reino Unido e União Soviética, herdeira da França de 1812 ou da Alemanha imperial, continentalistas. As ideologias e valores partidários seriam somente tempero para dar gosto à disputa entre as duas superpotências. Pouca validade havia para a geopolítica se um país era comunista, capitalista ou neutro, pois a tônica estava no acúmulo de poder e nos esforços para sobreviver da melhor forma possível como grandes potências.

A questão é que os Estados Unidos sobreviveram ao fim da Guerra Fria como a potência marítima por excelência. Quem seria a dominadora territorial, dos grandes exércitos, forças de terra? No começo dos anos 1990 a China não apresentava tais credenciais para tanto, nem qualquer membro da União Europeia. A Rússia, que saía dos destroços da finada União Soviética, não tinha sorte melhor, uma vez que estava quase na solvência como Estado territorial digno desse nome. Na verdade, a Rússia havia retrocedido politicamente para o século XIX, com pouca industrialização e dependente da exportação de commodities.

Mas, com a “reconstrução” político-econômica que passou a haver a partir de 2000, sob o governo de Vladimir Putin, Moscou entrou no mérito de acreditar que ainda pode ser sede de uma grande potência ou, ao menos, de uma potência regional ascendente. Não acabe neste texto avaliar o juízo desse governo, se é certo ou errado. O debate proposto é analisar o perfil que a Rússia demonstra em face da disputa geopolítica da atualidade, em face do objetivo dos Estados Unidos para se manterem como a primeira das grandes potências.

Nos anos 1990, a baleia estadunidense saiu praticamente ilesa da grande disputa; já o urso soviético foi bastante machucado e teve de lamber suas feridas. Será que essas mesmas feridas se cicatrizaram no urso russo de hoje? Ao seguir as linhas dos mencionados clássicos neste texto, o processo político, no qual uma potência naval enfrenta outra territorial no decorrer da história, ainda não se esgotou. A Rússia de Putin teria de dar fim desse impasse, cujo caráter não é pessoal; não depende dele ou das circunstâncias governamentais – do mesmo modo que não é escolha particular de republicanos(as) ou democratas nos Estados Unidos.

Com efeito, há como observar que na atual guerra, Washington seria a “cabeça coordenadora” de um pacto militar (Otan) que congrega potências navais e territoriais, como o Reino Unido e a França mas que, no final das contas, levaria o prêmio à maior das potências navais, os próprios Estados Unidos. De outro lado, há a Rússia, de comportamento agressivo e continentalista, que se sente bem à medida que suas fronteiras são alargadas e o território cresce.

No meio há os peões de importâncias variadas, que se filiam a um dos disputantes. A começar pela própria Ucrânia, pode-se observar que sua guerra não ocorre por democracia ou direitos diversos, mas sim pelo fato de sua posição estratégica. O Estado ucraniano é vítima geopolítica pela posição que ocupa no leste europeu. Ele é área de contenção ou de passagem para os Estados Unidos e Otan. Para a Rússia, a Ucrânia é a periferia russa, sem vontade própria, mas com a tarefa de ser a primeira zona de defesa da Rússia. Por outro lado, a Bielorrússia fecha com Moscou e a Hungria prefere manter distância.

Guardadas as devidas proporções, há como repetir expressão dita pelo político mexicano Porfírio Diaz (1830 a 1915), que disse “Pobre Mexico, tan lejos de Dios y tan cerca de Estados Unidos”. Aqui ficaria assim: pobre Ucrânia, tão distante de Deus e tão perto da Rússia.

Em virtude de tudo que foi exposto, há como perceber que a resolução dessa guerra não será nada fácil, nem deverá ocorrer de modo rápido para a necessidade que o assunto pede, sobretudo para aqueles(as) que mais sofrem, independentemente se é russo(a), ucraniano(a) ou de alguma parte da Europa. Sim, será da forma descrita se, efetivamente, houver verdade nas reflexões encontradas nos dois mestres do pensamento político: Tocqueville e Mackinder.

Por fim, cumpre dizer que não se trata de seguir ou empregar determinismos científicos ou geográficos que tanta perturbação provocou nas análises sobre política internacional das grandes potências. O debate geopolítico já teve sua pena cumprida por causa de afirmações categóricas. O intuito deste texto é somente abrir reflexões sobre tema que merece mais atenção. Será que a premissa do mar contra a terra; da enxada contra a espada, ainda tem validade?

 

professor
Foto: Alex Reipert – DCI/Unifesp

Por José Alexandre Altahyde Hage, professor do Departamento de Relações Internacionais da Escola Paulista de Política, Economia e Negócios (Eppen) da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) — campus Osasco; e do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais da Universidade Federal do ABC (UFABC)