Hélio Caetano Farias (1)

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O elemento central e permanente na história do sistema internacional é a contestação do poder. Tal afirmação, apesar de encontrar respaldo em diversos autores da geopolítica e do realismo nas relações internacionais, é a que inicia o terceiro pilar “Preserve Peace Through Strength” da Estratégia de Segurança Nacional dos EUA, de 2017. Um documento basilar ao entendimento dos desafios da Defesa daquele país e de suas consequências à ordem internacional. Reexaminá-lo, em tempo de combate à pandemia do coronavírus, proporciona algumas pistas sobre as tendências da geopolítica global e sobre os desafios ao Brasil.

Extrapolando a dimensão biológica e sanitária, as respostas nacionais à
pandemia do coronavírus têm demonstrado inúmeras vulnerabilidades de Estados,
incluindo potências como os Estados Unidos. Os episódios recentes envolvendo a
importação de equipamentos médicos vitais, como os respiradores russos e
chineses (2), poderiam ser casos isolados, senão fossem precedidos por ações como
a flexibilização de normas para atração de médicos e de força de trabalho qualificada (3) e, sobretudo, pelo anúncio, em 18 de março, de aplicação da Lei de Produção de Defesa (Defense Production Act)4 para obrigar as empresas norte- americanas a atenderem as demandas emergenciais. Uma lei que remonta a década de 1950 e o contexto da Guerra da Coreia.

Os casos acima manifestam o que a própria Estratégia de Segurança Nacional (NSS, 2017) assinalava como ameaças às capacidades de defesa dos EUA. Partindo da constatação que a defesa e o desenvolvimento produtivo são dimensões indissociáveis, o documento demonstra que a capacidade das Forças Armadas de responderem as demandas está diretamente relacionada a existência de um sistema produtivo nacional robusto e diversificado. Nesse sentido, expõe:

The ability of the military to surge in response to an emergency depends on our Nation’s ability to produce needed parts and systems, healthy and secure supply chains, and a skilled U.S. workforce. (NSS, 2017, p. 29)

A redução da participação do setor produtivo na composição da riqueza norte-americana trouxe severas consequências. Nas últimas duas décadas, o processo de desindustrialização se acentuou. Identificou-se uma redução das capacidades das empresas, e de suas cadeias de suprimentos internacionalizadas, de atenderem aos requerimentos estratégicos da Defesa (DoD, 2018). Com o sistemático enfraquecimento do sistema produtivo norte-americano, a demanda por profissionais qualificadas também se reduziu.

Para ilustrar os processos acima, dois dados significativos podem ajudar. O primeiro se refere ao setor de máquinas e equipamentos industriais. Desde a década de 1980, ele vem caindo nos EUA, especialmente a partir dos anos 2000. A China, até 2005, respondia a menos de 15% do consumo global de máquinas e equipamentos. Em 2011, este país demandava mais de 40%. Com uma estratégia de desenvolvimento própria, a China passou a produzir internamente e, já em 2015, passou a liderar a produção global de máquinas e equipamentos. Em números absolutos representava US$ 24,5 bilhões, cerca de 28% do total global, enquanto os EUA representaram apenas US$ 4,6 bilhões, ficando atrás, por exemplo, de Japão, Alemanha, Itália e Coreia do Sul (DoD, 2018; KALVANI, 2017; KLINE,2017).

O segundo dado auxilia a pensar na questão do emprego industrial nos EUA.
Se nas décadas de 1940 e 1950, as indústrias respondiam a cerca de 40% do
emprego, em 2017 o percentual não alcançava os 10%. Entre 1980 e 2017, os EUA
perderam cerca de 36% da força de trabalho industrial. Dos 7,1 milhões de
empregos perdidos, 5 milhões ocorreram a partir dos anos 2000 (MAHONEY;
HELPER, 2017). Sem a demanda da indústria, a oferta de profissionais qualificados diminuiu. Por isso, a Estratégia de Segurança Nacional (NSS, 2017) incluí o fortalecimento do ensino em áreas de ciência, tecnologia, engenharia e matemática, 5 da sigla STEM , como essenciais à Defesa e à retomada de uma economia
dinâmica.

Como sintetizado por Fiori (2018), a nova estratégia dos EUA desloca-se das aspirações por uma globalização liberal para centrar-se em um realismo pragmático. Não por outra razão, o documento aponta que as principais ameaças aos EUA estariam, em primeiro plano, no crescimento da competição com a China e a Rússia nas dimensões política, econômica e militar. Desdobra-se daí uma guerra permanente de posições com potências que se fortalecem a partir de estratégias de longo prazo, articulando a projeção de poder com as potencialidades de seus sistemas nacionais produtivos.

China e Rússia tem assegurado os seus interesses nos seus entornos geopolíticos imediatos, contribuindo para minar o poder, a influência e os interesses norte-americanos. Nas demais regiões estratégicas do globo, as duas potências crescem de importância, passando a influir nas decisões de natureza econômica, diplomática e de segurança. Diferente de outros tempos, como na Guerra Fria, concepções ideológicas ou transcendentais não se confundem com as razões que 6 alimentam essa intensa disputa geopolítica. A premissa básica está no reconhecimento de que a ordem internacional se assenta na competição pelo poder entre as nações.

Os impactos da pandemia do coronavírus nos EUA são enormes. Neste início
de abril, o país é o que apresenta as maiores taxas de contaminação do mundo,
7 com mais de 400 mil infectados e 14 mil mortos (CRC, 2020) . Além de uma precisa cooperação internacional, as respostas a esse desafio mobilizam diversas capacidades nacionais. Aos já vultosos gastos militares dos EUA – em 2019, foram US$ 684 bilhões, cerca de 40% do total global (IISS, 2020) – se somarão um montante incontrastável de recursos do Federal Reserve e da Casa Branca com vistas a obtenção, no curto prazo, das tecnologias, força de trabalho e suprimentos médicos. E, nos médio e longo prazos, o desenvolvimento, manutenção e controle da produção e das cadeias de suprimentos de bens e serviços estratégicos. Com a crise, ecoa o legado de Alexandre Hamilton, como bem citado no relatório do DoD (2018), de que a segurança estará garantida com a existência de um setor manufatureiro pujante. As inovações tecnológicas daí decorrentes, mais do que um componente fundamental à competitividade econômica, são tratadas como capacidades que dotam as Forças Armadas de poder de fogo e domínios para prevalecer em qualquer conflito.

Delineia-se, para o cenário pós-pandemia, uma geopolítica fortemente condicionada por sistemas nacionais produtivos centrados na aquisição de autonomia estratégica. Um sistema internacional crescentemente desafiador, em que coexistirão determinadas características da globalização – suas redes financeiras, de produção e de comunicação – com as exigências cada vez maiores para que os sistemas produtivos nacionais atendam às demandas de Segurança e Defesa. Os desafios para os países periféricos como o Brasil não serão poucos e nem simples. Eles serão objeto de um novo texto para este OMPV. Por ora, entretanto, é prudente lembrar da observação de Nicholas Spykman (1942, p. 25) de as guerras no sistema internacional, apesar de indesejáveis, não podem ser ignoradas, fazer isso é cortejar com o desastre.

FARIAS, Hélio C. Geopolítica e as Capacidades Nacionais de Defesa: um olhar crítico sobre as tendências pós-pandemia. Observatório Militar da Praia Vermelha – OMPV. Rio de Janeiro: ECEME. 2020.

 

CRC. CORONAVIRUS Resource Center. Johns Hopkins University & Medicine. Acesso em 07 de abril de 2020. https://coronavirus.jhu.edu/map.html

FINANCIAL TIMES “US bought ventilators from Russian company under sanctions”

https://www.ft.com/content/47740f17-8620-4d99-a893-a4561c7fa76a

FIORI, José Luis. Geopolítica internacional: a nova estratégia imperial dos Estados Unidos. Saúde em Debates. Rio de Janeiro, v. 42, p. 10-17, 2018.

INTERNATIONAL INSTITUTE OF STRATEGIC STUDIES (IISS). Military Balance. 2020.

KALYANI, Dashan. “IBISWorld Industry Report 33351 Metalworking Machinery Manufacturing in the U.S.,” September 2017.

KLINE, Steven. “Understanding the Machine Tool Industry’s Ups and Downs,” Modern Machine Shop Online, 2017. https://www.mmsonline.com/articles/understanding-the-machine-tool-industrys-ups- and-downs

MAHONEY, Thomas; HELPER, Susan. “Ensuring American Manufacturing Leadership Through Next Generation Supply Chains,”. June 2017. http://mforesight.org/projects-events/supply-chains/

SPYKMAN, Nicholas John (1942). America’s strategy in world politics: the United States and the balance of power. Transaction Publishers, 2 ed. 2008.

US. National Security Strategy of the United States of America. Executive Office of The President. Washington DC Washington. United States, 2017.

U.S Departament of Defense (DoD). Assessing and Strengthening the Manufacturing and Defense Industrial Base and Supply Chain Resiliency of the United States. 2018.

Marcelo Barros
Jornalista (MTB 38082/RJ). Graduado em Sistemas de Informação pela Universidade Estácio de Sá (2009). Pós-graduado em Administração de Banco de Dados (UNESA), pós-graduado em Gestão da Tecnologia da Informação e Comunicação (UCAM) e MBA em Gestão de Projetos e Processos (UCAM). Atualmente é o vice-presidente do Instituto de Defesa Cibernética (www.idciber.org), editor-chefe do Defesa em Foco (www.defesaemfoco.com.br), revista eletrônica especializado em Defesa e Segurança, co-fundador do portal DCiber.org (www.dciber.org), especializado em Defesa Cibernética. Participo também como pesquisador voluntário no Laboratório de Simulações e Cenários (LSC) da Escola de Guerra Naval (EGN) nos subgrupos de Cibersegurança, Internet das Coisas e Inteligência Artificial. Especializações em Inteligência e Contrainteligência na ABEIC, Ciclo de Estudos Estratégicos de Defesa na ESG, Curso Avançado em Jogos de Guerra, Curso de Extensão em Defesa Nacional na ESD, entre outros. Atuo também como responsável da parte da tecnologia da informação do Projeto Radar (www.projetoradar.com.br), do Grupo Economia do Mar (www.grupoeconomiadomar.com.br) e Observatório de Políticas do Mar (www.observatoriopoliticasmar.com.br) ; e sócio da Editora Alpheratz (www.alpheratz.com.br).