A Europa sem os EUA? Os desafios de uma OTAN Naval Autônoma

Militares analisando dados em sala de comando
Foto: Freepik
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Fugindo um pouco dos meus artigos focados no Brasil, hoje vou fazer uma breve explanação sobre um artigo que li no CIMSEC. A Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) nasceu em 1949 sob a liderança dos Estados Unidos, com o claro objetivo de conter a expansão soviética e garantir a segurança da Europa Ocidental. A premissa era simples: unir potências democráticas contra a ameaça comunista. Contudo, passadas mais de sete décadas, a realidade estratégica mudou drasticamente. A Rússia continua a ser uma ameaça, mas os Estados Unidos, seu principal sustentáculo militar, demonstram sinais de retração e incerteza quanto ao compromisso com a defesa do continente europeu.

O ensaio publicado por Paul Viscovich, ex-comandante da Marinha dos EUA, propõe um cenário ousado e provocativo: a construção de uma estratégia naval da OTAN independente dos Estados Unidos. O texto parte da premissa de que Washington se tornará um parceiro instável, motivado por prioridades internas, disputas comerciais e o foco estratégico no Indo-Pacífico frente à ascensão chinesa.

A Fragilidade Europeia Sem o Guarda-Chuva Americano

Mesmo após décadas de desenvolvimento, a Europa ainda depende profundamente das capacidades militares dos EUA — especialmente em áreas como dissuasão nuclear, guerra antisubmarino e logística de campanha. Os submarinos britânicos, por exemplo, utilizam mísseis Trident de fabricação norte-americana. A dissuasão francesa, embora autônoma em termos técnicos, carece de doutrina integrada para garantir uma “resposta assegurada” fora do contexto OTAN.

Sem os EUA, a Europa enfrentaria lacunas críticas:

  • Perda da cobertura do sistema SOSUS (Sound Surveillance System), essencial na detecção de submarinos russos;

  • Necessidade de construir uma malha logística capaz de sustentar operações em múltiplos teatros navais (Atlântico Norte, Mar Negro, Mediterrâneo e Ártico);

  • Incapacidade imediata de projetar poder de forma eficaz, devido à baixa disponibilidade de porta-aviões, reabastecedores e navios anfíbios em quantidade suficiente.

Um Projeto Naval Continental: Ambição Realista?

A proposta de Viscovich prevê a criação de uma força naval europeia integrada, que renuncia à ideia de frotas nacionais balanceadas e aposta na especialização por país:

  • Porta-aviões: Reino Unido, França e Itália;

  • Submarinos estratégicos e de ataque: Reino Unido, França, Alemanha e Noruega;

  • Navios anfíbios: França e Espanha;

  • Logística e reabastecimento: Itália, França, Reino Unido e, futuramente, Alemanha e Países Baixos;

  • Escolta e guerra de minas: Bélgica, Países Baixos, Turquia e países nórdicos;

  • Canadá: guarda das rotas do Atlântico, produção de escoltas e apoio logístico e energético.

Trata-se de um modelo semelhante ao da Base Industrial de Defesa Europeia — descentralizado, interoperável e especializado. Mas exige uma coordenação política e financeira sem precedentes.

O Conceito Operacional: Contenção e Ameaça à Frota Russa

Três seriam os eixos estratégicos da nova doutrina naval da OTAN sem os EUA:

  1. Conter a Marinha russa em seus portos: controle dos estreitos de acesso ao Mar Báltico (Kattegat), ao Mar Negro (Bósforo) e ao Mar de Barents;

  2. Bloqueio marítimo e destruição de logística: uso de drones navais e submarinos convencionais para isolar a Frota do Norte e interceptar linhas de suprimento;

  3. Defesa do comércio marítimo europeu: reforço da patrulha do GIUK Gap (Groenlândia-Islândia-Reino Unido) com aeronaves de patrulha e sonares móveis.

O plano contempla inclusive operações de sabotagem, ataques assimétricos e emprego de veículos não tripulados, como fizeram os ucranianos contra a Frota do Mar Negro.

O Papel de Ucrânia e Diplomacia Naval

Outro ponto crítico é a integração plena da Ucrânia à OTAN, com foco na defesa do Mar Negro e uso dos rios interiores para avançar operações não convencionais. Viscovich chega a sugerir operações fluviais e drones embarcados em USVs para atacar rotas logísticas dentro da Rússia, ampliando o raio de ação da aliança.

Diplomaticamente, a estratégia exige:

  • Reforço das alianças intraeuropeias;

  • Redução da dependência econômica dos EUA;

  • Revisão da partilha de inteligência com Washington, diante da volatilidade política e possíveis vazamentos;

  • Prevenção de sabotagens russas e proteção cibernética das bases navais.

Uma Aliança em Encruzilhada

Embora a saída oficial dos Estados Unidos da OTAN pareça improvável no curto prazo, o simples desengajamento parcial já seria suficiente para paralisar parte da estrutura militar da Aliança. A Europa, apesar de sua força econômica e tecnológica, ainda não está pronta para assumir sozinha sua segurança coletiva.

Viscovich propõe não uma ruptura hostil, mas uma autonomização estratégica gradual. Para ele, o erro histórico foi não ter iniciado esse processo após a primeira gestão de Donald Trump — cujo ceticismo com alianças multilaterais expôs uma vulnerabilidade existencial da OTAN.

Considerações Finais

A Europa está diante de uma decisão estratégica de longo alcance. Ou permanece dependente dos humores políticos de Washington, ou inicia um movimento de independência militar real, como já ocorre em áreas como energia, tecnologia e meio ambiente.

O mar será o primeiro grande teste dessa nova ordem. Afinal, quem controla os mares, controla os fluxos econômicos, a dissuasão e, em última instância, a soberania.

A construção de uma estratégia naval da OTAN sem os EUA não é apenas uma utopia — é uma necessidade estratégica de longo prazo, se a Aliança pretende sobreviver em um mundo multipolar, digital e cada vez mais instável.

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