Crypto AG
Imagem: Wikimedia

Vitelio Brustolin é o pesquisador da Universidade Federal Fluminense (UFF) e de Harvard que liderou o estudo publicado na semana passada na Cambridge Review of International Affairs que, como revelou O GLOBO no domingo, detalhou o uso por órgãos do Estado brasileiro, incluindo a Marinha, de equipamentos de criptografia da Crypto AG, empresa suíça que durante décadas foi controlada secretamente pela CIA.

Nos siga no Instagram, Telegram ou no Whatsapp e fique atualizado com as últimas notícias de nossas forças armadas e indústria da defesa.

Em entrevista, ele afirma que a mera “suspeita de que os equipamentos podem estar sendo adulterados já deveria ser suficiente para que parassem de ser utilizados”. Diz, também, que o possível uso dos equipamentos em submarinos brasileiros “põe em risco não apenas a eficácia dos nossos submarinos, mas também as suas operações e as vidas de pessoas dentro deles e em nosso país”.

No estudo, Brustolin contou com a colaboração dos pesquisadores Dennison de Oliveira, da Universidade Federal do Paraná (UFPR), e Alcides Peron, da Universidade de São Paulo (USP).

O que as descobertas do artigo científico publicado por vocês indicam sobre como o Estado brasileiro lida com seus segredos?

No artigo, revelamos que alguns países chegaram a suspeitar dos equipamentos. Foi o caso da Argentina, durante a Guerra das Malvinas. A Argentina perdeu a guerra e a adulteração nas máquinas de criptografia foi uma das razões para a derrota. Em 1992, um executivo da empresa foi sequestrado no Irã e revelou a fraude. A partir de 1995, passaram a ser publicadas reportagens cada vez mais frequentes sobre a adulteração de equipamentos da Crypto AG. Para nós, cientistas, é necessário coletar provas e evidências para a publicação de um artigo como esse. Para os serviços de inteligência de um país, não é necessário ir tão longe. A suspeita de que os equipamentos podem estar sendo adulterados já deveria ser suficiente para que parassem de ser utilizados. Afinal, trata-se da comunicação confidencial e estratégica de um país. Os indícios estão por todo o lugar. Basta escrever “Crypto AG” no Google.

Pode ter havido falha de inteligência?

Não há outra explicação possível. A própria NSA (Agência de Segurança Nacional dos EUA) admitiu a fraude. Os documentos secretos dos Estados Unidos, que demonstram o acordo da CIA com a Crypto AG, foram desclassificados em 2014. Isso gera pelo menos três perguntas centrais. Primeiro: como é possível que não haja “indícios de comprometimento do sistema de comunicações”, diante de toda a informação disponível a qualquer pessoa sobre isso? Segundo: como os órgãos de inteligência do Brasil deixaram isso passar? Terceiro: por que a Marinha do Brasil continuou adquirindo equipamentos de criptografia dessa empresa entre 2014 e 2019? Apenas uma falha de inteligência explica isso.

A Marinha não disse se interromperá o uso desses equipamentos. A continuação de sua utilização acarreta um risco?

O equipamento põe em risco não apenas a eficácia dos nossos submarinos, mas também as suas operações e as vidas de pessoas dentro deles e em nosso país. A Marinha afirma que “utiliza softwares e algoritmos próprios para a proteção de dados sigilosos, uma criptografia de Estado, totalmente restrita e desenvolvida no âmbito da Força”. Se isso é verdade, por que foi adquirido software da Crypto AG, conforme o Portal da Transparência revela? Por que foi adquirida, da própria Crypto AG, licença para o uso desse software? Os equipamentos que a Marinha adquiriu de 2014 a 2019, o seu software e a sua licença foram pagos com dinheiro público. Qual é o sentido de gastar dinheiro público com algo que não será utilizado? No mais, quem pode acreditar nos sistemas de comunicação dos nossos submarinos, depois de as próprias agências de inteligência dos EUA admitiram que fraudaram os equipamentos? A CIA só se desfez da Crypto AG em 2018. O Brasil comprou um sistema em 2014 e continuou adquirindo software e licença para ele até 2019. Será que a CIA, que era dona da empresa, não fez nada no sistema?

O Brasil é capaz de desenvolver estes equipamentos de modo totalmente doméstico?

O Brasil tem capacidade de produção de sistemas de comunicação via rádio. A própria Imbel, que é uma empresa estratégica de defesa do Brasil, produz sistemas de comunicação e eletrônica. Por que não investir na ampliação e diversificação da produção nacional do hardware, já que, segundo a Marinha, os softwares e os algoritmos já são produzidos no Brasil? Além disso, o Brasil possui o Centro de Pesquisas e Desenvolvimento para a Segurança das Comunicações (Cepesc) desde 1982. Esse Centro atua dentro da Abin. Desde que houve violações nas comunicações de autoridades brasileiras, em 2013, esse centro passou a produzir soluções para proteger algumas autoridades. Um investimento maior na área tornaria desnecessária a aquisição da plataforma de criptografia da Crypto AG por parte da Marinha, de 2014 a 2019. Conforme demonstram as movimentações no Portal da Transparência, os equipamentos da Crypto AG custaram milhares de dólares, e não milhões. O quanto valeria para o Brasil investir nessa área e nos tornar menos vulneráveis e dependentes de países estrangeiros? Quanto nos custa continuarmos dependentes?

Atualmente, há grande polêmica envolvendo a tecnologia 5G e possível espionagem. As descobertas do artigo nos dizem algo sobre a disposição dos Estados Unidos em espionar os seus aliados?

O artigo trata da espionagem promovida por agências americanas (CIA e NSA), além da alemã BND. O artigo é sólido e está todo baseado em documentos. Dito isso, não há dúvidas de que houve adulteração de equipamentos de criptografia para espionagem, durante décadas. É importante saber se algo mudou desde o uso das primeiras máquinas adulteradas, as CX-52, a partir dos anos de 1950. É importante saber se algo mudou desde as revelações de espionagem de agências estadunidenses sobre autoridades e empresas brasileiras, em 2013. É importante saber o que o Brasil irá fazer para deixar de ser refém de situações como essa.

Fonte: O Globo

Leia a Pesquisa dos Professores